samedi 5 février 2011

«Um mundo sem regras» de Amin Maalouf - III

Ao ouvir os noticiário de hoje Sexta-feira 04.02.2011 na Euronews relatando e repisando passo a passo os últimos acontecimentos no Egipto vi reforçada a actualidade gritante deste livro publicado em 2009 e mais uma vez senti uma enorme vontade senão mesmo uma quase necessidade de o partilhar com o resto do mundo. Assim seleccionei mais um trecho que me parece vir mesmo a propósito das questões que já se levantam sobre os possíveis cenários políticos com a saída de Mubarak e decidi publicá-lo ainda que de repente, e só agora, me tenha apercebido que a sua reprodução mesmo que parcial é proibida pelo Editor. Quase em simultâneo tentei conseguir por e-mail a sua autorização e entretanto rezo para que não se zangue muito… quem sabe talvez assim ajude à sua divulgação e lhe aumente as vendas! Aqui vai :



«Nos próximos anos saberemos construir entre os homens, para além de todas as fronteiras, uma solidariedade de um novo tipo – universal, complexa, subtil, reflectida, adulta ? Independente das religiões sem ser de modo nenhum anti-religiosa ou insensível às necessidades metafísicas do homem, que são tão reais como as necessidades físicas ? Uma solidariedade que possa transceder as nações, as comunidades e as etnias sem abolir a profusão das culturas ? Que possa unir os homens face aos perigos que os espreitam sem se comprazer num discurso de apocalipse ?


Por outras palavras, veremos emergir neste século um novo humanismo mobilizador que não seja refém de nenhuma tradição, que não caia nos desvarios do marxismo e que não surja também como um instrumento ideológico ou político do Ocidente ? De momento não vislumbro as suas primícias. Constato, sim, o extraordinário poder mobilizador das prerrogativas hereditárias que acompanham os humanos do berço ao túmulo – que por vezes são perdidas, mas acabam quase sempre por ser recuperadas como se estivessem constantemente agarradas por uma trela invisível – que atravessam os séculos, adaptando-se melhor ou pior à evolução do mundo, mas mantendo sempre o seu domínio. E, inversamente, também constato o carácter frágil, passageiro e superficial das solidariedades que gostariam de transceder essas prerrogativas.


Quando Marx designava a religião como o «ópio do povo» não o fazia com escárnio nem com desdém como geralmente fizeram os seus discípulos. Talvez não seja inútil recordar a sua frase na totalidade, que dizia : «A angústia religiosa é simultânemente a expressão de uma verdadeira angústia e um protesto contra essa angústia. A religão é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, a alma de um mundo sem alma. É o ópio de povo.» Do seu ponto de vista, era necessário abolir «essa felicidade ilusória» para que as pessoas se dedicassem a construir uma felicidade real, do que poderíamos sensatamente deduzir, com a distância do tempo, que se a felicidade prometida se revelasse ainda mais ilusória, os povos regressariam ao seu «ópio» consolador.


Parece-me pois que, se Marx tivesse podido assistir a esse ressurgimento da religião no centro da esfera política e social, sentir-se-ia certamente afligido, mas não verdadeiramente surpreendido.


Prevalecendo no seio das sociedades árabes e muçulmanas em detrimento do nacionalismo bem como do marxismo, o islamismo político não se limitou a vencer estas doutrinas, assimilou-as e apropriou-se delas.


O exemplo mais eloquente é o da revolução iraniana de 1979 – religiosa, mas igualmente nacionalista, antimonárquica, anti-ocidental, anti-israelita e exprimindo-se em nome das massas desfavorecidas. Uma síntese poderosa que irá exercer uma influência determinante no conjunto do mundo muçulmano.




Valeria a pena debruçarmo-nos sobre esta proximidade extrema entre Islão e politica, porque é um dos aspectos mais inquietantes e mais desconcertantes que a realidade de hoje apresenta.


Estranhamente, este fenómeno é explicado da mesma maneira pelos defendores do radicalismo religioso e pelos detractores do Islão. Uns porque é o seu credo, os outros porque isso reconforta os seus preconceitos, todos concordam em dizer que não se pode separar Islão e política, que sempre foi assim, que a coisa está inscrita nos textos sagrados e que seria inútil querer mudá-la. Por vezes anunciada com estrondo, constantemente subentendida, esta opinião é objecto de um tão amplo consenso que ela possui todas as aprências da verdade.


Pela minha parte, permaneço dubitativo. Se se tratasse apenas da avaliação critíca, das suas práticas e das suas crenças, não perderia muito tempo com a questão. Embora tenha vivido sempre na vizinhança do Islão, não sou um especialista do mundo muçulmano, ainda menos um estudioso do Islão. Se alguém procura saber «o que diz realmente» o Islão, é melhor não contar comigo. E se alguém espera ler, escrito por mim, que todas as religiões pregam a concórdia, também é melhor não contar comigo – a minha convicção profunda é a de que todas as doutrinas, religiosas ou profanas, trazem em si os germes do dogmatismo e da intolerância ; em algumas pessoas esses germes desenvolvem-se, noutras permanecem latentes.


Não, confesso, não sei melhor do que qualquer outro «o que diz realmente» o cristianismo, o Islão, o judaísmo ou o budismo ; estou convencido de que cada crença se presta a infinitas interpretações, as quais dependem muito mais do percurso histórico das sociedades humanas do que dos textos sagrados. Estes dizem em cada etapa da História o que os homens têm vontade de ouvir. Algumas afirmações que ontem eram invisíveis iluminam-se subitamente ; outras, que pareciam essenciais, caem no esquecimento. As mesmas Escrituras que outrora justificavam a monarquia de direito divino, acomodam-se hoje à democracia. E encontraremos facilmente, a dez linhas de um versículo que louva a paz, um outro que canta a guerra. Cada passagem da Bíblia, do Evangelho ou do Alcorão deu lugar a inúmeras leituras e seria absurdo que alguém proclamasse, após tantos séculos de exegeses e de controvérsias, que só existe uma interpretação possível. Compreendo que os zeladores o afirmem, estão no seu papel. É difícil aderir a uma certa leitura do texto quando se considera que as outras leituras são igualmente legítimas. Mas os observador da História, quer seja crente ou não, não pode situar-se no mesmo terreno. Do seu ponto de vista, não se trata de determinar que interpretação das Escrituras está conforma aos ensinamentos da fé, mas de avaliar a influência das doutrinas na marcha do mundo e, inversamente, também a influência da marcha do mundo nas doutrinas.


Pela minha parte, se a opinião corrente sobre as relações entre Islão e política me inquieta é porque ela constitui o fundamento mental deste «afrontamento das civilizações» que cobre de sangue o mundo e ensombra o futuro de todos. A partir do momento em que se considera que, no Islão, a religião e política estão indissociavelmente ligados, que a coisa está inscrita nos textos sagrados e que constitui uma característica imutável, então instala-se na ideia que o referido «afrontamento» nunca parará nem dentro de trinta anos, nem dentro de cento e cinquenta, nem dentro de mil anos, e que nós estamos na presença de duas humanidades distintas. Uma ideia que considero desmoralizante, é claro, e destruidora, mas acima de tudo simplista, aproximativa, irreflectida.»


Depois de ler isto só me resta torcer para que o povo Egípcio consiga finalmente a tão desejada liberdade e que sobretudo a saiba preservar, implantando no país um regime democrático em que todas as opiniões, sem excepção, possam ser ouvidas e respeitadas ! O desafio é enorme e muitos dirão que o risco também, mas não arriscar seria baixar os braços e ceder ao marasmo ! Tanta coragem não merece um tal desfecho !

24 commentaires:

  1. Folgo em saber que ainda não foste presa :O)
    Ou, se foste, que pelo menos o teu blog não foi fechado.

    ahahahahahah

    RépondreSupprimer
  2. São,
    Para já nenhuma resposta, mas imagino que só amanhã me dirão alguma coisa. Estou confiante porque afinal trata-se de trechos soltos e a brincar a brincar dei-o a conhecer a pessoas que nunca nele tinham ouvido falar e acredita que vale a pena lê-lo! Tem uma linguagem muito accessível e o tema é de extrema actualidade! Na pior das hipóteses terei de os apagar, mas entretanto acho ter atingido o objectivo principal! Por isso nada a lamentar ou quase!
    Jocas para ti São! Vemo-nos na Funda

    RépondreSupprimer
  3. Mas já sabes que se fores presa eu levo-te tabaco. Ou chocolate. Ou tabaco e chocolate.
    Já estás melhorzita?

    RépondreSupprimer
  4. Ok fica combinado assim! Como diz o povinho "Quem tem amigos não morre na cadeia"!
    Estou melhor mas ainda não estou a 100%, tenho ainda o dia de amanhã para recuperar... Terça é que já tenho que estar bem ou estou tramada!! Um abraço e bigada pelo carinho da tua preocupação! Laura

    RépondreSupprimer
  5. Eu por acaso também ando com uns sintomas que não auguram nada de bom... mas nada que me iniba de te ir levar os víveres à prisão :O)

    RépondreSupprimer
  6. São,

    Ohh vê se te cuidas e se cortas o caminho à gripe! Fica no quentinho, leitinho quente com mel e talvez uma daquelas pastilhas efervescentes com vitamina C boas para aconstipação e talvez 1 ou 2 Dafalgan e vais ver que passa... senão depois só com um anti-biotico que à partida se deve evitar! Cuida-te piquena! ;)

    RépondreSupprimer
  7. Nunca mais gasto dinheiro em médicos. Venho aqui ;O)

    RépondreSupprimer
  8. São,
    És uma brincalhona! E sobretudo espero que não te ponhas a tomar tudo o que te aconselhem... mesmo sendo eu!! Só te disse aquilo que é usual nestes casos de constipação para evitar que chegue a gripe! Até a farmácia da esquina te dirá o mesmo!

    RépondreSupprimer
  9. Não tenho farmácia na esquina... são p'r'aí umas 20 esquinas...

    RépondreSupprimer
  10. A religião é algo de extremamente útil para quem tem a cabeça fraca, pois qualquer dúvida, qualquer temos é resolvido recorrendo a ela. E isso serve a agenda de muita gente, que a coberto da religião leva a cabo os seus próprios intuitos. Beijoca!

    RépondreSupprimer
  11. Rafeiro Perfumado,
    Mesmo que possa estar de acordo contigo, pois não é por acaso que qualquer Igreja consegue enraizar-se melhor onde o nível de Vida for mais baixo e degradante, basta olhar os países pobres seja de que continente for, essa não é a questão! Nâo aqui e agora! A questão está em querermos, podermos e devermos respeitar as crenças e/ou convicções, de todo o tipo, de todo o ser humano esperando e merecendo o mesmo de volta. Esta é a verdadeira questão.

    RépondreSupprimer
  12. São,
    Ena tantas esquinas!! Mas deixa lá que não parece mas tem um lado positivo... é que um bom exercício de marcha ajuda a manter a linha!! ;)

    RépondreSupprimer
  13. O problema não reside nas pessoas sem religião respeitarem as com religião, está nas pessoas religiosas quererem impor as suas ideias aos outros.

    RépondreSupprimer
  14. Rafeiro Perfumado,
    Também está aí a questão, mas só enquanto cada um, (religioso ou não) nâo conseguir respeitar o outro e as suas crenças e/ou convicções! Dou-te um exemplo eu acredito eu Deus, sou até católica pelo baptismo ainda que não seja praticante (até porque acredito muito pouco na Igreja católica... e este tema seria longo, porque nela conheci pessoas duma enorme riqueza humana) e não me acho "fraca de cabeça"!! E acho mais, acho que enquanto olharmos para os que pensam ou sentem ou acreditam diferente de nós com esse tipo de aprecição é difícil de chegar a um consenso onde o respeito reine!! Mas não te preocupes que não fiquei ofendida... sei o que vale a minha cabeça e o que tu pensas, pensa muita gente, com quem convivo e até de quem gosto! E volta sempre !

    RépondreSupprimer
  15. Eles vão conseguir...
    Estou a torcer muito!

    RépondreSupprimer
  16. mfc,

    Também quero acreditar que sim e como tu torço por eles!

    RépondreSupprimer
  17. É um excelente texto.
    Obrigado pela partilha.
    A mistura da religião com a política é um enorme perigo para a humanidade.
    Querida amiga, bom fim-de-semana.
    Beijos.

    RépondreSupprimer
  18. Nilson Barcelli,
    Completamente de acordo! A religião, qualquer que seja, pode e deve ter o seu lugar na sociedade. lugar esse que nunca deverá coincidir com o do Estado e suas instituições!
    Além disso, ainda bem que gostaste! Volta sempre!

    RépondreSupprimer
  19. É com prazer que vim aqui passear pelos jardins da laura.
    Religião e Estado.
    Eis um tópico interessante Laura, e como o Nilson diz, uma mistura explosiva.
    Se há um espaço para a o Estado e outro para a religião? Algo do tipo "compartimentos estanque"?
    Isso jamais aconteceu...
    Religião e Estado, são as duas uma e a mesma forma de poder. O que se passa é que ao longo dos tempos o eixo da religião foi desviando-se para o culto dum novo deus: o Dinheiro.
    E é pelo domínio das almas pelo poder do dinheiro que os Estados nele se fundem, Estado e Religião numa só entidade.

    RépondreSupprimer
  20. Charlie,
    Ainda bem que gostou dos meus "jardins"!
    Quanto à impossibilidade de espaços distintos (estanques não direi) lamento mas dizer que jamais aconteceu é negar a história... pois é precisamente o que acontece hoje nos estados laicos do mundo Ocidental! Como França, Espanha ou até mesmo Portugal! Onde a Igreja, neste caso a católica tem o seu espaço! Aliás essa é grande diferença entre o percurso histórico da religião cristã e a religião islâmica! E devo confessar que este seu comentário fez-me decidir por um 4° trecho deste autor que se debruça sobre isso mesmo!
    Quanto à sua teoria do novo deus: O Dinheiro, concordo, mas parcialmente pois de novo ele não tem nada, sempre foi um dos pilares do poder só que com o tempo tornou-se o mais importante, determinante e revelador do seu nível de influência! Mas foi um prazer tê-lo por cá!!

    RépondreSupprimer
  21. Querida amiga, desejo-te uma óptima semana.
    Beijos.

    RépondreSupprimer
  22. Nilson Barcelli,
    Obrigada pelo carinho! Uma boa semana para ti tb!

    RépondreSupprimer
  23. A encontrei em N. barcelli e interessante e
    iluminado o que o escritor nos diz.

    Marx no final tornou-se virulento e não era ouvido com o entusiasmo do princípio.

    Mas a religião católica (eu sou católica à minha maneira) nunca me tirou liberdade.

    Mas eu sinto ninguém me poderá responder na terra, seja esta ou aquela religião.
    É a Deus/Jesus que aprendi por mim a dirigir-me.
    Nenhuma consciência é mais clara, nenhum coração mais puro, nenhuma boca mais verídica.

    Senhor Jesus, que dizeis de Vós mesmo?

    É assim que eu sinto o sentir religioso. Dentro de mim, apenas meu!

    Não estou bem a responder ao que escreve que é muito bom, mas foi uma abertiura que me deu
    para mostrar o que sinto sobre religião.

    A finalizar o que talvez não interesse a ninguém.
    A religião é Amor e o resto, é fantasia dos homens.
    E nos homens ou mulheres, neste caso especifico, eu não acredito!

    Gostei de a encontrar,

    Maria Luísa

    RépondreSupprimer
  24. Maria Luísa,

    Li atentamente o seu comentário e depressa me dei conta que se resolvesse responder-lhe com detalhe cada uma das suas frases daria, como se costuma dizer, pano para mangas sob pena de se tornar mais longa a resposta que o próprio texto a que se refere! E ainda que as nossas opiniões em vários pontos sejam para mim claramente divergentes, fazendo jus ao que aqui se partilha e defende só posso concluir que apesar de ser evidente o que nos distingue isso não tem forçosamente que nos separar... antes nos pode e deve unir no respeito pelo direito à diferença! Por isso volte sempre e sobretudo não se iniba de dizer o que pensa, esteja ou não de acordo com a minha abordagem! Entretanto tenha um bom fim de semana!

    Com um abraço de Laura

    RépondreSupprimer