Balanço de uma Vida
Laura não consegue precisar quando, pela primeira vez na sua vida, olhou para
trás? Qual o momento exacto em que quis perceber o sentido do seu próprio
percurso? O porquê de cada uma das suas escolhas? A razão, ou a falta dela, nos
momentos mais decisivos da sua vida?
O porquê daquela determinação sem reticências que a fez rasgar a eito o seu
caminho, mesmo nas encruzilhadas mais dificeis? Porquê partir em vez de ficar? Porquê
seguir sempre em frente sem sequer se dar o tempo da dúvida ou até mesmo o de
chorar? Porquê?!
Hoje, enquanto procura respostas, as lágrimas brotam-lhe, assim, sem aviso
surpreendendo-a a todo o instante. No peito, o peso insustentável dos erros
cometidos, corta-lhe a respiração e é o pânico que por momentos se instala
deixando-a lívida de angústia... dir-se-ia transparente!
Mais do que nunca vulnerável, Laura tenta, sem grande êxito, esconder a
fragilidade crescente que a vem consumindo, devagarinho, a fogo lento, mas corrosivo.
Uma fragilidade que a desgasta e que parece acompanhar uma consciência de si cada
dia maior e mais nítida, mas que apesar disso em nada a conforta. E os erros
parecem suceder-se de forma inevitável, qual destino malfadado!
Descrente e desacreditada, Laura consome-se ao longo de dias que sem dó nem
piedade se sucedem... e por todos os tempos, faça frio ou faça sol, Laura parece
arrastar o seu triste fado em cadeados de ferro! O seu andar, de tão pesado e
vacilante até parece deixar rastro, e no seu olhar a luz frágil da esperança
vai diminuindo e projectando sombras de espanto a cada dia que passa. No rosto
o travo amargo dos dias deixa sulcos e Laura sente-se vergar sob o peso da idade
e duma promessa ainda por cumprir... a duma Vida que quis
diferente!
Ao longo dos anos Laura viu sua vida escarpar-se-lhe por entre os dedos,
como aquela areia fina das praias da sua infância, com que tantas vezes
construiu castelos levados pela espuma do mar! Apesar disso nunca deixou de
sonhar, e fazê-lo acordada sempre foi o seu melhor passatempo. Pobre Laura!
Quatorze anos se passaram desde que em 2003 resolveram emigrar e desde
então guarda na memória o estado de espírito com que partiram quando decidiram tudo
recomeçar num outro país!
Um país distante de que ouvira falar pela primeira vez ainda criança,
durante as férias de Verão passadas em casa de seus avós maternos, a viverem na
altura em Lisboa.
Era certamente Domingo pois o traje de seus avós era de rigor e o passeio
inabitual: ir esperar alguém ao aeroporto nos anos sessenta não era
acontecimento corrente e menos ainda popular.
Tratava-se de um senhor alto, moreno, elegante e também ele vestido a
preceito! Nunca soube quem era, nem que tipo de elo o ligava aos seus avós e
desse momento apenas guarda na memória: a tez morena da sua pele, o rigor
clássico da sua indumentária, o brilho dos seus sapatos e a bela bonequinha
suiça de tranças loiras que lhe deu de presente!
Hoje vê esse momento como o presságio duma viagem que quarenta e tal anos
depois viria a fazer!
E é por isso que cada vez que se lembra do dia em que chegaram a Genebra não
pode impedir-se de sorrir! 28 de Fevereiro de 2003, um dia ameno e luminoso
embora húmido. A tensão emocional era então imensa, mas a certeza de vencer era ainda
maior.
Poucas horas após a chegada, algumas gotas de chuva pareciam querer lavar o
caminho para o abrir fresco, luzidio e a cheirar a Primavera, como quem a
anuncia... e assim começou a aventura.
Há-de sempre lembrar-se do espanto de sua filha Joana ao descer da
camioneta, lançando-lhe um olhar incrédulo ao mesmo tempo que lhe perguntava “mas
aonde está a neve?” A neve fazia parte do pouco que sabiam sobre o país e
parecia-lhes mesmo indissociável. A Suiça dos desportos de Inverno, a Suiça das
belas e grandiosas montanhas cobertas de neve, onde estava ela?! Sem qualquer
certeza, respondeu-lhe que teriam talvez que sair da cidade para ver a neve,
que certamente haveria mais a norte, nas aldeias das montanhas. Mas a verdade é
que aquele ano revelar-se-ia particularmente ameno e doce, a Primavera não
tardaria a chegar e o Verão ficaria registado como dos mais quentes dos últimos
anos!
E foi assim que tudo começou: “Era uma vez uma pequena família, fragilizada
por uma crise em vias de se alastrar por toda a Europa, e mesmo para além dela.
Uma pequena família que parte à procura de bem mais que trabalho, à procura de
estabilidade, de tranquilidade e de uma dignidade quase perdidas... enfim uma
família à procura de um sonho, à procura daquilo a que vulgarmente chamamos
felicidade!”
Para Laura o simples facto de não se conformar, de dar o passo e partir, é
por si só uma vitória, é já metade do sucesso, é garantia de vencer... nada mal
para quem faz parte de um povo marcado pelo “fado”!
Mas nem por isso o caminho seria mais simples.
Como já dizia o poeta “partir é morrer um pouco”, é como cortar o fio à
meada e encetar uma outra, mais nova, colorida e cheia de promessas, como se o caminho
seguido até aí terminasse de repente num beco sem saída, não deixando outra
alternativa senão a de tudo recomeçar.
A verdade é que emigrar é como nascer de novo, ainda que já adulto, sofrido
e não raramente desesperado, numa terra distante, muitas vezes desconhecida, outras
tantas inóspita, que não nos viu nascer e que muito provavelmente não nos há-de
ver morrer.
Mas ao contrário de muitos emigrantes, Laura e a sua pequena família sentiu-se
desde o primeiro minuto, bem-vinda em terra alheia. Mais do que isso, foi amor
à primeira vista!
Durante quase um mês viveram em casa de familiares, os mesmos que os
ajudaram a dar o grande passo, que os levaria a um outro país e a uma nova
étapa da vida. E durante esse tempo procuraram activamente o seu próprio espaço
que acabariam por encontrar no primeiro andar duma vivenda centenária!
Pequena, antiga mas quente e acolhedora! Tinha apenas 3 divisões e à
excepção da casa de banho as duas outras tinham dupla função, uma sala que ao
cair da noite servia também de quarto aos três membros da família e uma cozinha
que era também sala de jantar. Só alguns meses depois mudariam para o rez-do-chão,
que sendo parecido era contudo maior dado que anexava mais uma divisão espaçosa
que viria a ser o quarto de Joana.
Aí viveram três anos de felicidade que jamais esquecerão! O dinheiro não
era muito, o trabalho era duro, os compromisso de peso mas a coragem e vontade
de ambos era tal que os mantinha unidos e fortes. Ao final de cada dia o
reencontro era vivido com alegria e muita história a partilhar. Juntos enfrentaram
e ultrapassaram todos os obstáculos, honraram todos os compromissos, lutaram,
trabalharam e amaram-se como nunca antes!
À medida que os dia passavam e que a aventura ganhava forma, crescia em
Laura um sentimento reconfortante de segurança. Não havia a menor dúvida de que
tinham feito a boa escolha, álias se erro houvera, o único que reconhecia e apenas
pouco tempo depois de iniciada a aventura, foi o de não terem partido mais
cedo!
Meio ano após a chegada, Laura perguntava-se o quanto não teria sido mais
fácil e até proveitoso terem tomado essa mesma decisão dez anos antes?! Mais
novos, mais fortes e com mais energia parecia-lhe evidente que a experiência
teria sido ainda melhor.
Mas o tempo não anda para trás e o que realmente interessa é o presente e o
que nele construímos, para que o futuro se possa revelar um bom Porto de
abrigo!
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